A importância da independência interna em uma agência de segurança nuclear


Algumas lições sobre o conceito de independência interna podem ser aprendidas da situação recente vivenciada pela USNRC, a Comissão Regulatória Nuclear Norte-Americana, com relação ao repositório final de Yucca Mountain e ao impacto na segurança nuclear decorrente do acidente de Fukushima.

O Congresso Norte-Americano aprovou o Nuclear Waste Policy Act em 1982, garantindo uma base legal sólida para que os rejeitos de alta atividade vindos das atividades militares, da pesquisa e da geração de energia pudessem ser armazenados em local seguro. 

Em função desta política de rejeitos nucleares, o Departamento de Energia (DoE) escolheu dois locais que cumpriam todos os requisitos. Finalmente, em 2002, o Congresso determinou que o Departamento de Energia (DoE) construísse o repositório final em Yucca Mountain no estado de Nevada, um dos locais escolhidos.
No entanto, a partir de 2009, Yucca Mountain passou a não ser mais uma opção para o governo e, em fevereiro de 2010, o DoE suspendeu o projeto do repositório, solicitando em seguida à USNRC a retirada do pedido de licença de construção.
Em junho de 2010, o Atomic Safety and Licensing Board (ASLB) da USNRC se pronunciou sobre o assunto, afirmando que o DoE não tem autoridade para reverter a decisão do Congresso sobre Yucca Mountain. O ASLB é um órgão da USNRC que tem a responsabilidade de conduzir audiências contenciosas sobre assuntos relacionados ao licenciamento de reatores nucleares, materiais nucleares e ações de cumprimento da regulamentação, quando o licenciado contesta penalidades ou determinações da USNRC. Eventualmente, o ASLB pode conduzir audiências sobre os procedimentos da própria USNRC. As avaliações do ASLB são levadas em consideração pela Comissão Deliberativa da USNRC, antes de uma decisão.
Apesar do posicionamento do ASLB, em outubro de 2010, o presidente da USNRC decidiu por um fim na avaliação técnica de segurança e no licenciamento do repositório de Yucca Mountain. As bases técnicas desta decisão foram revistas e documentadas em relatório de 06/06/2011 pela Inspetoria Geral, órgão independente da USNRC, que não está sujeito à supervisão de qualquer membro da USNRC. A responsabilidade da Inspetoria Geral é promover auditorias e investigações internas para verificar o cumprimento dos objetivos institucionais da USNRC, bem como informar ao Congresso sobre a necessidade e o progresso de ações corretivas, não só para melhorar a eficiência, mas também para evitar fraudes e abusos. A Inspetoria Geral envia seus relatórios ao presidente da USNRC, ao Congresso, e, no caso de assuntos criminais, ao Departamento de Justiça.
No relatório da Inspetoria Geral da USNRC sobre Yucca Mountain, são enfatizadas as responsabilidades do presidente e dos comissionários (membros da Comissão Deliberativa) em garantir o livre acesso às informações e realçando que o presidente e o diretor executivo de operações, elo entre o corpo técnico de licenciamento e a Comissão Deliberativa, são os responsáveis por garantir que os comissionários estejam totalmente informados e atualizados sobre os assuntos relacionados às suas funções. Além disto, a legislação americana permite a comunicação entre qualquer funcionário do corpo técnico e os comissionários, garantindo, dessa forma, que informações relevantes para a segurança nuclear, que não foram devidamente discutidas, cheguem ao conhecimento dos comissionários.
O Comitê de Ciência, Aeroespaço e Tecnologia da Câmara de Deputados do Congresso Norte-Americano avaliou este relatório e concluiu que a decisão do presidente da USNRC não era baseada em critérios normativos de segurança, além de constatar a intenção de interromper a avaliação de segurança do projeto de Yucca Mountain.
A Inspetoria Geral não representa o único caminho pelo qual o Congresso toma conhecimento dos atos da USNRC. Independente da sua autonomia nas questões técnicas de segurança nuclear, a USNRC, por lei, presta contas de seus atos ao Congresso todos os anos, incluindo relatórios de ocorrências anormais nas instalações nucleares e de itens não resolvidos de segurança, além de fornecer assistência técnica às Comissões do Congresso.
Em meio aos acontecimentos relacionados a Yucca Mountain, os quatro comissionários, em uma carta dirigida à Casa Branca e em declaração ao Congresso, deixaram claro, entre outros itens, que o presidente da USNRC tentou influir na revisão independente do relatório sobre os impactos na segurança nuclear decorrentes do acidente de Fukushima, elaborada pelo Advisory Committee on Reactor Safeguards (ACRS). O ACRS é um órgão da USNRC que tem a responsabilidade de rever as bases técnicas das licenças de construção e operação, independentemente da análise realizada pelo corpo técnico durante o processo de licenciamento, bem como de advertir sobre situações de perigo nas instalações nucleares e de verificar a adequação de normas propostas.
Todas as informações que serviram de base a este artigo foram obtidas na internet. Algumas delas estão disponíveis na página Web da USNRC, outras na página da Câmara dos Deputados do Congresso Norte-Americano. A transparência dos atos internos do órgão americano de segurança nuclear, que inclui a divulgação de Relatórios de Análise de Segurança, dos questionamentos e das respostas dos projetistas e operadores e da documentação de licenciamento em geral, contribui inclusive para a independência interna, pois, ao possibilitar à sociedade a fiscalização do desempenho do órgão público responsável pela segurança do indivíduo, do trabalhador, da população e do meio ambiente, libera os profissionais de licenciamento de possíveis pressões no exercício de seu trabalho. Está claro, na experiência americana, que a transparência e a segurança nuclear das instalações civis não representam empecilhos para o desenvolvimento da energia nuclear, como os teóricos da conspiração e os negligentes com a segurança nuclear procuram propagar.
Convém destacar, no que foi relatado anteriormente, o importante conceito, em matéria de legislação, da garantia da independência interna de atuação de uma Agência de Segurança Nuclear. Fica patente que não é suficiente prever uma Procuradoria Jurídica, uma Corregedoria e uma Ouvidoria, pois são unidades organizacionais comuns ao Serviço Público de forma geral. Também não basta garantir a independência externa de uma Agência de Segurança Nuclear apenas pelo seu vínculo à Presidência da República e pela sua autonomia nas decisões regulatórias, como no caso da USNRC. É de suma importância assegurar-se de fato a existência da independência interna da Agência de Segurança Nuclear, através de artigos legais versando sobre:
(1) A estrutura organizacional direcionada para o cumprimento das finalidades regulatórias de segurança nuclear, isto é, a previsão em Lei de uma unidade organizacional para avaliação de segurança, uma para fiscalização, uma para normatização e outra para emissão de licenças;
(2) Os órgãos internos independentes, responsáveis pela verificação do cumprimento destas finalidades regulatórias de segurança nuclear, utilizando-se de avaliações, audiências e investigações, ou seja, a previsão em Lei de uma Inspetoria Geral, um Comitê Independente de Avaliação de Segurança Nuclear e um Comitê Independente de Audiências sobre Assuntos de Segurança Nuclear;
(3) A prestação de contas ao Congresso Nacional, através da apresentação de relatórios anuais incluindo os itens de segurança não resolvidos e as ocorrências anormais nas instalações nucleares;
(4) A livre comunicação e circulação de informações internamente e entre o corpo técnico e a Comissão Deliberativa, para que haja completude das avaliações de segurança; e
(5) A garantia da transparência das informações de segurança nuclear, com a divulgação na internet dos Relatórios de Análise de Segurança e das avaliações regulatórias destes relatórios, incluindo os questionamentos e as respostas dos projetistas e operadores e a documentação de licenciamento em geral.
Estes instrumentos legais de independência interna exemplificam o conceito de democracia direta, muito utilizado nos EUA, que não ferem o espírito democrático das constituições republicanas, ao contrário, estabelecem meios para que sejam executados os ajustes necessários no funcionamento das instituições governamentais. A experiência vivenciada pela USNRC evidencia a necessidade de incluir tais instrumentos legais na Lei da Agência Brasileira de Segurança Nuclear, ora em elaboração, de forma a reforçar as garantias de cumprimento das responsabilidades relativas à segurança nuclear e a assegurar que seja atingido o objetivo principal de proteção do indivíduo, do trabalhador, do público e do meio ambiente.

Sempre é o momento adequado para se retomar o Anteprojeto de Lei para reestruturá-lo e para incluir os dispositivos legais que tornem forte a Agência Brasileira de Segurança Nuclear no cumprimento de suas finalidades regulatórias de segurança nuclear, a exemplo da independência interna, tratada neste artigo, e da Convenção de Segurança Nuclear (força de Lei), em artigos anteriores. Inclusive, não se deve relevar a importância da coerência legal ao longo de todo o anteprojeto de lei, obrigação do legislador, sempre distante das conjunções e conveniências políticas e pessoais, sem omissões e sem deixar de lembrar das consequências que a matéria legal levará ao mundo real, em que está em jogo a proteção do indivíduo, do trabalhador, do público e do meio ambiente dos efeitos indesejáveis da energia nuclear, tais como os conhecidos em Goiânia, Chernobyl e Fukushima.

Sidney Luiz Rabello é engenheiro com experiência de mais de 30 anos  em Licenciamento e Segurança de Usinas Nucleares.

* As opiniões do autor não são necessariamente refletem as posições da Comissão Nacional de Energia Nuclear.