Legislação moderna para a agência reguladora nuclear e a garantia da segurança das usinas nucleares no Brasil (contribuição para o debate)

A Casa Civil da Presidência da República tomou a iniciativa de criar uma Agência Reguladora para a Área Nuclear, estando atualmente em processo de desenvolvimento do Projeto de Lei a ser proposto ao Congresso Nacional.

A Agência exercerá as atividades de regulamentação, licenciamento e fiscalização da área nuclear no Brasil, atualmente sob responsabilidade de Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). A criação da Agência é uma antiga reivindicação dos técnicos do setor e tem amplo apoio da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), órgão das Nações Unidas da qual o Brasil é membro fundador.

A experiência internacional dos órgãos regulatórios nucleares e os erros e acertos na criação das agências brasileiras representam um ponto de partida importante na formulação de uma legislação moderna para a Agência Reguladora, com o objetivo de assegurar que o estado da arte e da tecnologia, em termos de segurança nuclear, seja a base do exercício de suas atividades normativas, de fiscalização e de avaliação de segurança, assim como seja garantida a participação em suas decisões de todos os segmentos da sociedade envolvidos na preservação do meio ambiente, da saúde do público e dos trabalhadores, frente às aplicações da energia nuclear.

A garantia de independência política de atuação da Agência é um dos dispositivos jurídicos essenciais para que os interesses dos proprietários das instalações e da indústria nuclear não venham a interferir em suas decisões.

Ao considerar-se que as Indústrias Nucleares Brasileiras (INB), que controlam o ciclo do combustível, a Eletronuclear, operadora das usinas nucleares e todos os institutos de pesquisas nucleares do país (que também devem ser licenciados e fiscalizados) pertencem ao Estado Brasileiro, isto é, estas empresas e institutos estão de alguma forma vinculados a um Ministério da República, conclui-se que não é simples o estabelecimento das garantias para a independência política de atuação da Agência.

Para se resolver esta situação, é necessário que a Agência Reguladora esteja diretamente vinculada à Presidência da República, para que possa se impor politicamente no exercício de suas atribuições sobre todos os Ministérios que, de uma forma ou outra, tenham que requerer licenças ou autorizações para construir ou operar.

Obviamente sempre haverá o argumento de que a independência absoluta é impossível, mas a vinculação à Presidência da República é um recurso que faz uma enorme aproximação à independência absoluta, impensável no caso de vinculação da Agência a um Ministério.

Apenas o posicionamento adequado no organograma do Governo Brasileiro, no entanto, não garante a independência política da Agência Reguladora Nuclear.

É imprescindível a introdução de dispositivos jurídicos adicionais que vedem a ocupação dos cargos de direção a ex-dirigentes e ex-funcionários de empresas requerentes ou detentoras de licenças ou autorizações da Agência Reguladora, inclusive dos Institutos de Pesquisas da CNEN, para que não se venha a licenciar ou fiscalizar de acordo com a conveniência destas empresas ou institutos.

A separação das funções de execução daquelas de deliberação é fundamental para a Agência. A maioria das agências prevê em sua Estrutura Básica apenas diretorias de caráter executivo.
Na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), cuja natureza é similar à da agência reguladora para a área nuclear, além destas diretorias, é previsto um Conselho Consultivo.

O acúmulo das funções de execução com as de deliberação em um mesmo órgão traz consigo distorções que levam ao condicionamento do voto dos Diretores ao Diretor Geral (ou Presidente), descaracterizando a Direção Colegiada para fins deliberativos, o que não seria adequado para a Agência Reguladora para a Área Nuclear.

A Direção Colegiada é apenas válida tão somente para fins de gestão da execução. Portanto, na Estrutura da Agência Reguladora para a Área Nuclear devem estar previstas as Diretorias para as atividades de execução e a Comissão Deliberativa para as decisões sobre diretrizes, planos, licenças, autorizações etc.

Esta estrutura permitirá inclusive uma fiscalização efetiva pela Comissão Deliberativa das atividades de execução pelas Diretorias, através de acompanhamento sistemático do cumprimento das atribuições da Agência.

Os membros da Comissão Deliberativa devem observar os mesmos requisitos de vedação relacionados para a nomeação dos Diretores, assim como, para desempenhar suas funções adequadamente, deverão ter dedicação exclusiva e contar com infraestrutura necessária.

Como consequência do exposto acima, os seguintes dispositivos jurídicos, como um mínimo, deveriam estar incluídos no projeto de lei da criação da Agência Reguladora Nuclear:
1. Vinculação da Agência à Presidência da República – A Agência não poderá estar vinculada ao Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), pois a nova CNEN, sem atribuições regulatórias (seus Institutos de Pesquisas devem ser licenciados e fiscalizados), e as empresas associadas (INB – Indústrias Nucleares Brasileiras e Nuclep – Nuclebrás Equipamentos Pesados) continuarão a ser órgãos do MCT. A Agência também terá que licenciar e fiscalizar as instalações do Ministério de Minas e Energia (Eletronuclear – Angra 1, Angra 2 e Angra 3), além de instalações de menor risco de outros Ministérios, evidenciando que a vinculação da Agência a qualquer Ministério será um obstáculo para a sua independência política.

A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), no intuito de auxiliar os países membros no cumprimento do artigo 8º da Convenção Internacional de Segurança Nuclear (adesão do Brasil em 1999), recomenda em seus Guias de Segurança que a Agência Reguladora não deve estar sujeita a pressão ou influência política na tomada de decisões, no que diz respeito à segurança (1, 4).

Portanto, para não estar sujeita a pressões de natureza política, a Agência Reguladora ficaria melhor posicionada como órgão da Presidência da República, a exemplo das congêneres americana e argentina.

2. Comissão Deliberativa – órgão máximo da Agência, com funções deliberativas e de fiscalização do cumprimento das atribuições legais pelas Diretorias. Deve ser composta por representantes de associações ambientais e científicas brasileiras, conforme sugere o eminente jurista Paulo Affonso Leme Machado em seu livro Direito Administrativo na página 809 da décima edição. 

Baseado na sugestão do jurista, uma proposta de composição para a Comissão Deliberativa seria a seguinte: (1) um representante dos ambientalistas escolhido pelo Ministério de Meio Ambiente; (2) um representante dos trabalhadores escolhido pelo Ministério do Trabalho; (3) um representante do Ministério da Saúde; (4) um representante da Engenharia Nacional, escolhido pelo Ministério da Educação nas Faculdades de Engenharia das Universidades Federais; (5) um representante de Pesquisa, escolhido pelo Ministério da Educação nas Universidades Federais; (6) um representante do Ministério da Justiça com notório saber em Direito Nuclear. 

Tendo em vista que a atribuição central da Agência é zelar pelo meio ambiente, pela saúde do público e trabalhadores, justificam-se as representações do Ministério do Meio Ambiente, do Ministério do Trabalho e do Ministério da Saúde.

As representações da Engenharia Nacional e da Pesquisa se baseiam no fato de que os empreendimentos de pequeno, médio ou grande portes a serem licenciados e fiscalizados pela Agência são empreendimentos da Engenharia, sendo a usina nuclear o exemplo mais notório. 

De uma forma geral, a escolha das representações deve levar em conta esta característica importante, pois um profissional competente, mas sem um perfil adequado, pode não se adaptar como representante da Comissão Deliberativa da Agência. Este critério é também bastante importante para a ocupação das Diretorias da Agência.

Os membros da Comissão Deliberativa terão dedicação exclusiva (8 horas por dia) e contarão com infraestrutura necessária para exercer suas funções.

3. Critério de Vedação para a Ocupação das Diretorias, da Comissão Deliberativa ou de Funções Gratificadas e de Assessoramento da Agência: “Não é permitida a nomeação de representante que tenha atuado diretamente como dirigente ou funcionário de empresa requerente ou detentora de licença ou autorização da Agência ou da CNEN quando exercia a atribuição de órgão regulatório ou indiretamente através de prestação de serviços por pelo menos 10 anos antes da nomeação. Esta vedação também se aplica a dirigentes e funcionários pertencentes às instituições de pesquisa da CNEN e às empresas associadas”.

4. Em geral são previstas cinco diretorias nas Agências existentes atualmente, sendo uma delas a Diretoria-Geral (Presidência) e não são definidas em lei as demais diretorias. Para garantir que o organograma sempre contemple as atribuições de fiscalização, sempre explicitada como atividade central da Agência, assim como o Licenciamento, é importante prever-se na lei da criação a Diretoria de Fiscalização e a Diretoria de Avaliação de Segurança, uma vez que a fiscalização e a avaliação de segurança são as duas atividades que compõem o licenciamento.
5. A lei de criação da Agência Reguladora para a Área Nuclear deve torná-la uma instituição aberta ao público, prevendo uma Ouvidoria, uma Biblioteca de documentos e atos de licenciamento disponível ao público (a exemplo da congênere agência americana da área nuclear, vide http://www.nrc.gov) e o dispositivo das Audiências Públicas. A Agência também deve contar para seu funcionamento adequado com uma Corregedoria e uma Procuradoria. 

Poderiam ser abordados até a exaustão outros dispositivos legais, mas não é objetivo deste artigo esgotar as questões e escrever um anteprojeto de lei, mas alertar para aspectos legais bastante importantes que possam garantir a atuação plena e democrática da Agência Reguladora para a Área Nuclear.

Cabe também enfatizar que, sem estes recursos legais mínimos, a Agência não conseguirá exercer suas atribuições, implantando e exigindo dos requerentes e detentores de Licenças e Autorizações as técnicas modernas de licenciamento, de forma a refletir o estado da arte e da tecnologia.

Como exemplo, a Agência deve contar com recursos mínimos para exigir que sejam adotadas as normas e padrões mais recentes da Engenharia e de Segurança de Instalações Nucleares e Radiativas, assim como seja adotada no projeto das usinas nucleares a experiência operacional nacional e internacional, particularmente a decorrente dos acidentes de Three Mile Island e Chernobyl, de forma a introduzir no projeto características que venham a impedir que eventos severos impliquem na liberação de radiação para o meio ambiente.

O referendo pelo Congresso das nomeações do Executivo para a ocupação das Diretorias (e, como proposto aqui, para membros da Comissão Deliberativa) será um elemento bastante renovador, uma vez que retirará os vícios do convívio da promoção da energia nuclear com a fiscalização das suas aplicações, conforme requer a AIEA, desde que os critério de vedação e perfil adequado sejam respeitados.

Na elaboração do arcabouço legal da Agência Reguladora para a Área Nuclear, é recomendável a utilização da experiência internacional consolidada nos documentos da AIEA, que detalham a aplicação da Convenção Internacional de Segurança Nuclear, a exemplo dos seguintes “standards”:

1. GS-G-1.1 “Organization and Staffing of the Regulatory Body for Nuclear Facilities”;

2. GS-R-1 “Legal Governmental Infrastructure for Nuclear, Radiation, Radioactive Waste and Transport Safety”;

3. SF-1 “Fundamental Safety Principles”;

4. INSAG-17 “Independence in Regulatory Decision Making”;

5. Safety Series 110 “The Safety of Nuclear Installations”.

Nota do autor: Agradeço a colaboração de colegas da CNEN na elaboração da versão final do artigo.
* As opiniões do autor não são necessariamente refletem as posições da Comissão Nacional de Energia Nuclear.