Angra 3 e a reestruturação da área nuclear com segurança

Artigo de Sidney Luiz Rabello, engenheiro em Licenciamento e Segurança de Usinas Nucleares da Comissão Nacional de Energia Nuclear, publicado no Jornal da Ciência Notícias da SBPC na edição 2496 de 01 de Abril de 2004 e no Jornal do Brasil na edição de 6 de abril de 2004.

Angra 3 é a grande discussão na política energética, quando se fala em energia nuclear. Uma usina nuclear que se fez irreversível, visto o substancial investimento que já foi realizado em infraestrutura e na aquisição de equipamentos, sem qualquer retorno do capital aplicado.

É necessário que seu aproveitamento seja realizado o mais breve possível, de preferência definindo-se pela construção de Angra 3. Por que não, uma vez que se conta com profissionais de grande competência na área, toda uma infraestrutura industrial e que a maior parte do investimento necessário será feita em moeda nacional?

No entanto, o eixo da discussão deveria ser diferenciado. Deveria ser deslocado para se estabelecer um Programa Nuclear Brasileiro para a consolidação das conquistas do passado e para colocar as forças do Desenvolvimento Científico e Tecnológico da Área Nuclear para complementar o domínio tecnológico.

Neste cenário, Angra 3 entraria como mais um elemento, talvez definitivo, na consolidação do setor.

Dentro deste contexto, a Indústria Nuclear Brasileira, a Nuclep e a Eletronuclear identificariam os itens tecnológicos em que o Brasil é dependente e, para superar esta dependência, seria envolvida toda a capacidade de Desenvolvimento Tecnológico do país na Área Nuclear, que se concentra fundamentalmente nos Institutos de Pesquisa da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e no Centro Tecnológico da Marinha em SP (CTMSP).

Certamente, como conseqüência de um debate dentro dos marcos do realismo da independência tecnológica, despontaria uma formulação concreta para um Programa Nuclear Brasileiro, uma estrutura institucional adequada para a sua realização e para o envolvimento de amplos setores da Universidade e da Indústria Nacional.

Um aspecto que sempre é abordado com muita timidez, quando se pensa no Programa Nuclear Brasileiro e sua superestrutura institucional, é a questão da Segurança das Usinas Nucleoelétricas, das Instalações do Ciclo do Combustível, da Indústria, da Medicina e da Pesquisa.

Estas instalações foram construídas para trazerem benefícios aos indivíduos da sociedade. Entretanto, se a segurança não for colocada como prioridade, as expectativas geradas em torno dos benefícios poderão ser frustradas.

Uma atitude empresarial de cortes sistemáticos de custos poderá levar as instalações a operarem em condições inseguras, podendo implicar no comprometimento do meio ambiente, dos trabalhadores e da população, o que é indesejável para todos, inclusive para o empresário imediatista.

Portanto, a reestruturação da Área Nuclear pressupõe, antes de qualquer coisa, pensar-se sobre a Segurança de suas Instalações, isto é, na proteção da população, dos trabalhadores e do meio ambiente, quanto aos aspectos negativos que possa haver na utilização da energia nuclear.

A ênfase, na década de 80, era o desenvolvimento da tecnologia nuclear e todos os esforços foram concentrados com este objetivo, inclusive institucionalmente, retirando-se pessoal técnico altamente qualificado e recursos financeiros da área de segurança.

O acidente de Goiânia não só veio denunciar que este modelo institucional era ultrapassado, como também poderia ter comprometido de vez a continuidade dos Programas Nucleares Brasileiros em desenvolvimento na época.

A situação dramática só foi minimizada graças à dedicação dos técnicos da área nuclear, em particular os da CNEN e os de Furnas, evitando que a área sofresse um baque derradeiro. Apesar de todas as conseqüências do acidente de Goiânia, pouco foi feito para melhorar o panorama institucional.

No passado, foram feitas críticas bem fundamentadas ao Acordo Brasil- Alemanha, ao Plano de Emergência de Angra 1, à Cisão de Furnas, mas, hoje, depois de duas décadas de debates, infelizmente o modelo institucional da área nuclear se mantém inalterado, no que diz respeito à segurança.

Decorrente desta situação, a área de segurança não tem técnicos em quantidade suficiente; não é fornecida infraestrutura adequada para os fiscais realizarem as atividades de verificação 'in loco' da segurança das instalações; problemas de natureza gerencial se agravam dia-a-dia, muitos deles deixando de ser circunstanciais e passando a ser estruturais; não há ferramentas jurídicas adequadas para que as ações de fiscalização se façam respeitadas.

A CNEN, órgão responsável pelo Licenciamento e Fiscalização das Instalações da Área Nuclear, é também responsável pelo Desenvolvimento Científico e Tecnológico da Área Nuclear no Brasil.

O modelo institucional altamente concentrador, herdado da década de 80, coloca a CNEN no centro das decisões e das ações ao controlar as Indústrias Nucleares Brasileiras (INB) e a Nuclep.

Também não é desconhecida a forte colaboração da CNEN ao atual CTMSP, onde está sendo desenvolvido o projeto mais ambicioso na Área Nuclear, que culminará na construção de um reator para submarinos.

A Eletronuclear, mesmo estando fora da órbita da CNEN, utiliza os Institutos da CNEN como prestadores de serviço. Em síntese, como uma Instituição com interesses tão consolidados no Desenvolvimento Tecnológico e nas Indústrias Nucleares pode garantir a segurança de suas próprias instalações?

A segurança pode aumentar os custos de projeto, de construção e operação; a segurança pode retardar a conclusão das instalações e, claro, sua inauguração e os dividendos políticos decorrentes.

Nada mais conveniente para uma instituição como a CNEN, com os tentáculos na indústria e na pesquisa, poder controlar e com mão de ferro a segurança das instalações da área nuclear, dispondo do Licenciamento e da Fiscalização segundo os interesses de seus dirigentes. Considerando-se uma organização deste tipo, pergunta-se: as Instituições de Pesquisa da CNEN estão licenciadas e sendo fiscalizadas? As Indústrias a ela associadas estão sendo adequadamente licenciadas? É eticamente adequado quem fiscaliza prestar serviço ao fiscalizado?

A resposta a estas perguntas já é de domínio público: quem produz não pode fiscalizar e muito menos dirigir a fiscalização. É de domínio público, mas isto não significa que os problemas estejam sendo resolvidos. Mesmo o Brasil assinando e ratificando a Convenção Internacional de Segurança Nuclear e se comprometendo a criar um Órgão Licenciador e Fiscalizador independente institucionalmente e financeiramente, de forma a garantir a atuação plena de seus técnicos, nenhuma ação concreta até hoje foi feita no sentido de implementá-la.

Hoje, entretanto, está claro que atender à Convenção de Segurança não é suficiente. É necessário também que os cargos executivos da Instituição Licenciadora e Fiscalizadora a ser criada, inclusive e principalmente a Presidência e as Diretorias, sejam ocupados por profissionais com sólida formação em Licenciamento de Instalações da Área Nuclear, comprometidos com a proteção dos trabalhadores, da população e do meio ambiente.

A experiência dos últimos anos tem indicado que profissionais externos à CNEN, ocupando a Alta Administração, sem uma formação adequada e sem identificação com a área de segurança, paralisam a instituição e procrastinam a solução de problemas, sejam conjunturais ou estruturais.

Por outro lado, é desejável que na Comissão Deliberativa, órgão máximo desta nova Instituição, haja também a participação de Acadêmicos, Profissionais de Notório Saber e Políticos Ilibados, com uma visão mais generalista e universal.

A presença destes profissionais na Comissão Deliberativa certamente trará uma dinâmica fundamental para a nova Instituição, inclusive contribuindo para o rompimento de paradigmas, mas não imobilizando o corpo técnico e paralisando a máquina administrativa.

É muito importante ter-se em mente que todos perderão com um novo acidente: a população, o meio ambiente e os trabalhadores da área nuclear, que certamente terão que mudar de área de forma irreversível.

Portanto, é hora de se voltar a discutir o Programa Nuclear Brasileiro e o seu modelo institucional, de forma que sejam garantidos os benefícios da energia nuclear sem os malefícios bastante conhecidos e temidos por todos.

* As opiniões do autor não são necessariamente refletem as posições da Comissão Nacional de Energia Nuclear.